Blog JOGOS: ORIGEM, HISTÓRIA E DOWNLOADS, de autoria
de Superdotado Álaze Gabriel.
Disponível em http://arquivo-digital-de-jogos.blogspot.com.br/
Autoria:
Ana
Alayde Saldanha - Doutora
em Psicologia pela FFCLRP/USP, professora do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB – Brasil;
José Roniere Morais Batista - Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB - Brasil.
José Roniere Morais Batista - Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB - Brasil.
RESUMO
O Role-Playing Game (RPG) vem ganhando cada
vez mais espaço entre os jovens no Brasil e na área da pedagogia, na qual vem
sendo utilizado como ferramenta de aprendizado nas salas de aula. Este trabalho
teve como objetivo determinar qual a concepção que os jogadores sistemáticos
possuem a respeito dos jogos de interpretação de personagens, ou Role-Playing
Games, bem como quais os fatores motivacionais que levam à prática desse
jogo. Foi utilizado para a coleta dos dados um questionário sociodemográfico e
uma entrevista semi-aberta, sendo esta última analisada com base em categorias
determinadas a partir dos temas suscitados. As categorias demonstraram que o
RPG é percebido como um teatro improvisado, uma forma de lazer, uma terapia,
uma projeção de personalidade, um facilitador das relações pessoais e como uma
confraternização com amigos. Foi determinado ainda que o principal fator
motivacional dos jogadores era a amizade, a vontade de estar com os
companheiros de jogo. Aparentemente, o jogo de RPG possui tanto características
positivas quanto negativas, sendo que a diferença estaria na forma como é
utilizado. O resultado da pesquisa abre caminho para futuros estudos sobre esse
tipo de jogo que já se encontra inserido na cultura em massa.
Palavras-chave: Role-Playing Game, Jogo, Jogos eletrônicos,
Motivação.
INTRODUÇÃO
A atividade lúdica está presente em todas as
culturas do Planeta, ao longo da história da humanidade. Até mesmo os animais
apresentam o comportamento de brincar, em que realizam uma simulação de
luta, sem ferir o parceiro, em um ritual no qual respeitam a norma de não
morder e até reconhecem a suposta vitória de um dos participantes.
Huizinga (1996) acredita que é justamente essa peculiaridade do jogo, a de
ocorrer tanto para os animais racionais como para os irracionais, que faz dele
um fato mais antigo que a própria cultura, uma vez que esta última pressupõe a
existência de uma sociedade humana. O jogo, ao contrário, vai ser encontrado
como elemento antecedente à cultura, e vai acompanhá-la e marcá-la desde o
início da sua formação até a nossa atual fase de civilização.
O autor aponta ainda algumas das características
fundamentais do jogo, das quais podemos citar: o fato de ser livre, de partir
de uma atividade voluntária, de não ser visto como parte da vida real, mas
justamente como uma evasão desta para uma esfera temporária com orientação
própria, de ser isolado e limitado, jogado até o fim dentro de um segmento de
tempo e espaço e por ser uma forma de ordem, possuindo ritmo e harmonia em
regras que, quando não respeitadas, estragam o jogo (Huizinga, 1996). Para
outros estudiosos, mais preocupados com a função do jogo, o ato de brincar
desenvolveria a imaginação e a criatividade, beneficiaria a aquisição de
leitura e escrita, a reflexão, a lógica e o raciocínio, além de contribuir para
o desenvolvimento dos aspectos figurativos do pensamento (Fortuna, 2001).
O Role-Playing Game (RPG) surge, então, em
um quadro em que o ato de jogar se encontra incluído na prática cotidiana de
diversas sociedades nas mais variadas faixas etárias. E vai diferir de seus
antecedentes por propor uma prática cooperativa e não competitiva entre seus
participantes. Sua sigla vem do inglês e significa jogo de interpretação de
papéis; foi criado nos Estados Unidos no ano 1975 e desenvolvido a partir
de jogos estratégicos de guerra que simulavam batalhas em tabuleiros. De forma
resumida, o jogo se baseia na premissa de que cada participante faz o papel de
um personagem em uma aventura imaginária. Essa aventura é narrada por um
árbitro normalmente chamado de Mestre, que, por sua vez, descreve tudo o que
ocorre nos cenários, como o que os jogadores vêem, ouvem, sentem, etc. Os jogadores,
em seguida, descrevem o que seus personagens fazem frente à situação proposta,
o Mestre narra o resultado das ações dos personagens, e assim sucessivamente
(Jackson, 1994). O funcionamento é similar a um teatro, só que aqui a peça vai
sendo escrita na medida em que acontece, e cada personagem define o próprio
roteiro e todos os personagens coadjuvantes são interpretados pelo Mestre. Cada
jogador pode criar sua personagem seguindo uma limitação proposta pelo sistema
de RPG em uso.
Esse jogo de interpretação vem ganhando espaço no
campo da pedagogia, sendo cada vez mais utilizado em salas de aulas e em
oficinas com o objetivo de promover novas técnicas de ensino. Devido ao seu
caráter lúdico e à sua inserção no contexto de cultura em massa, o RPG promoveria
uma conduta mais ativa e dinâmica entre os alunos (Klimick & Bettocchi,
2003; Rodrigues, 2004; Silveira, n.d.). Já existem atividades no ambiente
escolar em que os alunos são incentivados a interpretar, mas essas mesmas
atividades não proporcionam a variedade de cenários e diálogos oferecidos pelo
RPG, ficando restritas a eventos específicos (Silveira, n.d.)
Rodrigues defende o uso do RPG como ferramenta para
a aplicação da pedagogia da imaginação proposta por Ítalo Calvino. Apresenta em
seu trabalho sugestões de como orientar professores e alunos no caminho de uma
invenção do real, da ficção, que auxiliaria no desenvolvimento dos hábitos de
leitura e escrita. Destaca três passos fundamentais para que um ser humano
saudável e letrado escreva. O primeiro deles é um acervo básico, uma base de
histórias, um conjunto de exemplos que sirvam para estabelecer um modelo de
narrativa. O segundo é uma platéia inicial sensibilizada, é o
desenvolvimento de um clima para compartilhar o que foi produzido pelo aprendiz
em uma platéia generosa e honesta, que saiba aplaudir, criticar e debater as
histórias. O último passo, e o mais trabalhoso, consiste em uma iniciação
competente, ou seja, na orientação do aprendiz por uma pessoa capacitada
para entender o funcionamento da máquina narrativa. Para pôr em prática seu
trabalho, Rodrigues desenvolveu, nos moldes do RPG, o jogo autoria, que vem
aplicando em sala de aula desde 1998 (Rodrigues, 2004).
A idéia de que a prática da narrativa auxiliaria no
desenvolvimento da escrita também foi apresentada por Simões (2000). A autora
indica uma diferença entre as histórias contadas e lidas, em que, nas segundas,
a criança aprenderia por experiência a estrutura da história, da linguagem e o
som de um texto escrito lido em voz alta. Apesar do trabalho de Simões ser
direcionado para as crianças e ser centrado nas histórias infantis, não deve
ser descartada a necessidade de se verificar a relação da narrativa com o
aprimoramento da escrita em adolescentes, e até mesmo em adultos. Essa conduta
levaria ao processo de criação da linguagem, evitando o posicionamento passivo
dos estudantes frente à educação. Uma das suas propostas apresentadas para os
professores envolveria, assim como nos jogos de representação, a oralidade e a
dramatização:
O educador poderia solicitar, por exemplo, que a
criança reproduza oralmente as narrativas lidas por ele. Nesse sentido, seria
interessante também estimular que a criança leia as
histórias (leitura de faz-deconta) para seus colegas. Essas atividades de retomada
da história poderiam ir se desdobrando, por sua vez, em outras, como desenho,
dramatizações, etc. (Simões, 2000, p. 27)
A característica atuante do RPG seria, dessa forma,
um dos seus principais destaques, uma vez que ele permitiria a oportunidade de
fugir da narrativa tradicional, oferecendo uma base sobre a qual os jogadores
construissem coletivamente suas próprias histórias (Klimick & Bettocchi,
2003). A esse tecer de histórias e imagens feito pelos participantes,
que retiram sua matéria-prima de outras fontes, gerando uma linguagem que
reinterpreta a narrativa, Mota (como citado por Pavão, 1999) chama de pilhagem
narrativa. Essa pilhagem, no entanto, não seria um mero processo de
repetição, mas uma atividade atualizante, já que permite o processo de criação.
Para defender essa idéia, Klimick e Bettocchi usam a teoria de Pierre Lévy, na
qual é feita uma distinção entre as dicotomias do possível-real e do virtual-atual.
Na transição do possível para o real, não haveria processo de criação, eles
seriam iguais, sendo que o primeiro não tem a existência. É como
quando digitamos a tecla a no teclado do computador e na tela aparece a letra
a. Não há surpresa, não há criação (p. 6). Já no processo do virtual
para o atual, acontece a resposta para um problema, como ocorre, seguindo o
exemplo anterior, na escolha do texto a ser digitado.
Não estamos aqui escolhendo dentre um grande número
de possibilidades prédefinidas o texto que vamos escrever, isso seria ir do
possível para o real; estamos indo de um número teoricamente infinito de textos
possíveis para aquele que julgamos ser a solução do problema, criando
autonomamente, indo do virtual para o atual. (Klimick & Bettocchi, 2003, p.
7)
Os autores concluem que:
Quando um grupo de jogadores escolhe um cenário de
RPG, cria suas personagens e joga uma história, e, mesmo que essa seja uma aventura-pronta
publicada por uma editora, a passagem é do virtual para o atual, e não do
possível para o real. (p. 7)
Os RPGs não se limitam apenas aos jogos de
tabuleiro, sendo muito difundidos no mundo dos jogos eletrônicos, onde são
conhecidos como MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-Playing Games).
Aqui os participantes se conectam em servidores da internet e interagem com
outros jogadores no mundo inteiro. Um dos MMORPG mais populares é o World of
Warcraft (WoW), que conta hoje com mais de oito milhões de assinantes.
É importante ressaltar que existem diferenças
nessas modalidades de jogo. O RPG tradicional requer a presença dos
participantes em um ambiente físico, real, e a interação aqui é feita com os jogadores.
Já no MMORPG, o contato é completamente feito no campo virtual, o que leva ao
isolamento físico dos jogadores, sendo a interação aqui feita com os personagens.
Esse tipo de isolamento causa polêmica, principalmente depois que cientistas
reunidos em um congresso de games em Ultrecht (Holanda) afirmaram que o
videogame causa tanta dependência como outras drogas (Games, 2003). As
pesquisas nessa área têm aumentado após a divulgação de casos em que jovens
morreram depois de horas de jogo no computador. Um desses exemplos é a de uma
menina de Pequim, que possuía o nickname de Snowly, e que faleceu
após jogar por vários dias consecutivos o WoW. Uma semana após o seu
falecimento, seus amigos online realizaram um funeral virtual para Snowly
(Ivanov, 2005).
Os problemas citados acima para os RPGs online, no
entanto, não fazem com que a modalidade tradicional do jogo fique isenta de
críticas. O assassinato de duas adolescentes em Teresópolis, Rio de Janeiro, em
2000, e outro assassinato em Ouro Preto, no interior de Minas Gerais, no ano
2001, foram associados ao jogo de RPG Vampiro - A Máscara. Os suspeitos
teriam, segundo a polícia, reproduzido os rituais do jogo que resultaram na
morte das vítimas (Lopes, 2003). Outro caso ocorreu em 2005, quando dois jovens
(22 e 21 anos) mataram um colega de jogo e seus pais, durante uma sessão de
RPG. O jovem que era o Mestre da partida afirmou em seu depoimento que o jogo
havia tomado a sua cabeça de forma muito maligna. O que permanece indeterminado
nesses casos é se os jovens já possuíam a personalidade anti-social antes de
praticarem o jogo ou se o último contribuiu para a estruturação da mesma.
Diante dos fatos citados anteriormente e do número
cada vez crescente de jovens que aderem à prática do RPG, fica clara a
importância de se investigar mais de perto como esse jogo se relaciona com seus
jogadores bem como de definir o perfil que estes possuem. O número ainda
pequeno de material publicado sobre esse tema, e muito limitado à área da
pedagogia, só ressalta mais a necessidade de explorá-lo de forma mais
detalhada. Partindo desses pressupostos, o presente estudo teve como objetivo
verificar a concepção do jogo de Role-Playing Game em jogadores
sistemáticos. Para tanto, procurou descrever o perfil dos jogadores de RPG,
identificar o significado do RPG para esses jogadores e determinar a motivação
que leva à prática do RPG.
Método
A amostra foi delimitada por critério de saturação,
e consistiu de 9 jogadores que praticam o RPG há mais de um ano, entre a faixa
etária de 20 a 25 anos (idade média de 22,9), e que realizam sessões de jogo
pelo menos uma vez por mês.
Os instrumentos utilizados foram um questionário
sociodemográfico e uma entrevista semi-estruturada, que foram aplicados a cada
participante individualmente. O primeiro teve por finalidade caracterizar os
participantes, com questões que versaram sobre: idade, sexo, estado civil,
profissão, grau de escolaridade, tempo de jogo, freqüência de jogo, prática de
outras modalidades de RPG, duração da sessão de jogo e religião. A entrevista
teve por objetivo explorar a relação dos jogadores com o RPG com questões sobre
significado do jogo, motivação, aspectos positivos e negativos e relevância do
jogo em sua vida.
Cada participante, ao ser contatado, foi informado
acerca do estudo bem como acerca do caráter voluntário da sua participação. Em
seguida, foi solicitado a responder, individualmente, os dados
sociodemográficos e a entrevista semi-aberta, que teve suas informações
transcritas para análise.
Os dados sociodemográficos foram analisados através
de estatística descritiva, com a utilização de medidas de posição (média,
mediana) e de variabilidade (desvio padrão, amplitude). A análise dos conteúdos
das entrevistas foi realizada com base em categorias determinadas a partir dos
temas suscitados nas entrevistas e processada em uma série de etapas, de acordo
com a proposta de Figueiredo (1993).
O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa, do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), sendo seguidos todos os procedimentos para pesquisa com
seres humanos do Ministério da Saúde (Resolução nº 196/96).
RESULTADOS
Perfil dos participantes
A maioria dos participantes entrevistados é do sexo
masculino (N=7), fato também evidenciado no discurso das entrevistas, nas quais
se aponta a idéia de que o jogo de RPG é predominantemente praticado por
homens. A faixa etária dos participantes variou entre 20 e 25 anos (média de
22, 9), sendo que as maiores freqüência encontradas foram justamente os
extremos dessa variação (20 e 25 anos), ambas com 33,3% de ocorrência. Quanto
ao tempo em que jogam RPG, obteve-se uma variação que vai de 5 a 17 anos, com a
média de 10,6 anos, sendo que a maioria deles (N=6) joga há mais de 10,5 anos.
Neste ponto, deve - se ressaltar uma conseqüência
resultante dessa variação na idade dos jogadores. O jogo de RPG começou a se
popularizar no Brasil no início da década de 90, e, como a maior parte dos
entrevistados possuía mais de 23 anos, acompanharam de perto esse fenômeno.
Como conseqüência, eles se consideram precursores
do movimento do jogo no Brasil e se diferenciam da nova geração de jogadores,
que, segundo eles, não sabem realmente reconhecer o verdadeiro fundamento do
jogo (que estaria na capacidade de interpretação dos personagens). Segundo o
relato de jogadores mais experientes feitos em momentos que intercalavam as
entrevistas, e nos momentos nos quais foram estabelecidos os contatos iniciais,
denominavam o grupo que acompanhou a chegada do RPG de geração xerox,
pois, como os livros que continham as regras do jogo eram muito caros, faziam
fotocópias do original. E chamam o grupo de novatos de roladores de dados,
pois afirmam que estes estão mais preocupados com o sistema de combate do jogo,
em vez de se concentrarem na interpretação dos personagens.
No que se refere ao sistema de jogo adotado pelos
participantes, apenas dois foram mencionados, o Advanced Dungeons and
Dragons (Winter, 1999) e o Dungeons e Dragons (Cook, Twet, & Williams,
2004). Na verdade, esses dois jogos fazem parte do mesmo sistema de RPG,
diferenciando-se um do outro apenas pela edição, que nada mais é que uma
atualização das regras. Essa ocorrência pode ser explicada pelo fato de que uma
das estratégias utilizadas para se estabelecer contato com a amostra foi a de
pedir para o entrevistando indicar o nome de outros dois jogadores para a
entrevista. Como cada grupo de RPG mantém uma relação com os seus integrantes e
com outros grupos que jogam o mesmo sistema, pode-se esperar que os nomes
indicados pelo entrevistando fizessem parte desse meio social.
Apenas um dos entrevistados era casado, e nenhum
deles possuía filhos. Em relação à profissão, mais da metade (N=6) eram
estudantes. Na escolaridade, todos os entrevistados tinham o segundo grau
completo, dos quais três haviam concluído o ensino superior. Seria preciso
realizar uma coleta em grande escala para verificar se esse padrão se repete,
já que assumimos que, para se jogar RPG, é preciso ter conhecimento de livros
de regras extensos e com conteúdos que requerem certa habilidade matemática.
A freqüência em que jogavam RPG variou de uma vez
por mês até quatro vezes por mês (divididas em uma sessão por semana). E a
duração de cada sessão de jogo era de 4 a 7 horas, sendo a média de 5 horas.
Dos participantes entrevistados, quatro não
possuíam religião, e, dos três que faziam parte da religião católica, apenas um
afirmava ser praticante do culto religioso. Os outros participantes afirmaram
ter crenças em outras formas de manifestação religiosa ou espiritual. Como
exemplo desse tipo de resposta, obteve-se: Todas e nenhuma, ou Digamos
que nenhuma... Acredito que isso não seja necessário para alcançar ou louvar o
que chamamos de Deus. Ateu não, porque eu acredito em Deus ou
algo similar... Esse resultado chama a atenção para o fato de que a quase totalidade
desses jogadores não possui religião ou não tem uma posição definida em relação
a ela.
Quase a metade dos entrevistados (N=4) pratica
algum tipo de RPG online, ou MMORPG, e esse mesmo número jogou (ou ainda
joga) outros sistemas de RPG, além dos que praticam com freqüência determinada.
Um dos entrevistados é Mestre nos jogos de RPG, quatro participam como
jogadores e os quatro restantes em ambas as posições (como jogadores em um grupo
e Mestres em outros, nunca os dois no mesmo grupo).
Entrevistas
A partir da análise do discurso dos participantes,
emergiram cinco categor A partir da análise do discurso dos participantes,
emergiram cinco categorias temáticas: conceito do RPG, motivação para o
jogo, aspectos positivos, aspectos negativos e atitude defensiva.
A primeira das categorias apresentada, conceito
de RPG, que indica a forma como esses jogadores percebem e definem esse
tipo de jogo, ficou subdividida em seis subcategorias denominadas
respectivamente: RPG como teatro, facilitador das relações sociais, forma de
lazer, terapêutico, projeção de personalidade e confraternização com amigos,
conforme pode ser observado na Tabela 1. Na primeira das subcategorias, RPG
como teatro, verifica-se que a definição desse jogo é a de um teatro
interativo, como um filme que vai sendo interpretado de forma dinâmica, no qual
são usados apenas os elementos verbais e oriundos da imaginação. Abrange o
aspecto principal do jogo de RPG, que é a interpretação de papéis, e é
justamente a idéia inicial passada nos capítulos introdutórios dos livros de
regras (Jackson, 1994). Essa subcategoria, em conseqüência, contém as maiores
freqüências de respostas. A subcategoria seguinte é a de facilitador das relações
sociais, e traz a idéia de que o RPG auxiliaria na aquisição de novas amizades,
atuando como ferramenta que aproxima pessoas e grupos, característica essa que
vai ser, em seguida, apontada por alguns participantes como um fator positivo
do RPG. A terceira sub-categoria, forma de lazer, assume a dimensão
lúdica do RPG, considerando-o uma alternativa de diversão. A subcategoria terapêutico
vai ser a que atribui características terapêuticas ao jogo, afirmando que nele
é possível deixar os problemas de lado e de expressar o mundo interior de cada
jogador. As duas últimas subcategorias são a projeção de personalidade,
que coloca o RPG como espaço que permite ao jogador se projetar, e confraternização
com amigos, que remete à amizade formada no grupo de jogo, tema retomado
posteriormente nos fatores motivacionais, nos aspectos positivos do jogo e no
primeiro contato com o mesmo. A Tabela seguinte traz as evocações ligadas à
formação dessas subcategorias.
A segunda categoria emergente foi a motivação para
o jogo. Essa categoria foi evocada principalmente nas respostas à pergunta ‘O
que o levou a jogar?’, que tinha por principal objetivo determinar quais os
motivos iniciais para o ingresso nesse tipo de jogo. A motivação inicial para o
RPG, objetivo primeiro do questionamento, acabou sendo apontada pelos
participantes como a curiosidade de saber sobre esse tipo diferente de jogo.
O primeiro contato que tiveram com o RPG foi
relatado de quatro formas diferentes: através de amigos (maior incidência),
através dos próprios livros de RPG, através de revistas especializadas no tema
e através de professores. Essa freqüência de respostas era esperada, visto que,
como já mencionado anteriormente, a maior parte dos entrevistados participou do
surgimento do jogo no Brasil, além da escassez de material em português e do
alto custo dos livros que favoreceram a divulgação do jogo pelo contato
pessoal, feito entre amigos. O relato do entrevistado 03, que teve conhecimento
do jogo através do seu professor de línguas, corrobora essa idéia. O professor
que introduziu o jogo aos alunos o conheceu quando viajou para os Estados
Unidos, onde o RPG era jogado desde a década de 80.
Quando questionados sobre o que os levava a
continuar a jogar, com exceção de apenas um participante, todos os demais que
responderam afirmaram que o fator motivacional era a amizade, a relação com os
integrantes do grupo. O participante que respondeu de forma diferenciada
apontou como fator motivacional a possibilidade de fazer o personagem se
desenvolver, de obter poder para destruir obstáculos maiores. Podemos verificar
neste último uma força motivacional intrínseca, ligada a elementos do jogo,
enquanto, para os demais, a força motivacional é extrínseca ao jogo, vem dos
integrantes que constituem o grupo, da interação estabelecida com eles, sendo a
temática da amizade um fator recorrente em várias entrevistas e apontada como
um dos aspectos positivos do RPG.
Outra dimensão importante trazida pelas entrevistas
é a dificuldade pelas quais os jogadores passaram (ou passam) na vida: dos nove
entrevistados, por exemplo, três possuem pais divorciados e um havia perdido um
irmão. E, no relato de alguns deles, foi posta em questão a idéia de que, por
considerarem o RPG uma maneira de sair da realidade, seria comum sua
prática por jovens com problemas: A maioria do povo que joga RPG que eu
vejo, tem problemas em casa, tem problemas... (entrevistado 01). Ou ainda: É
tipo um ópio, você esquece o mundo real e vai pro mundo imaginário. Você foge
um pouco dos seus problemas, das suas raivas
(entrevistado 01). Pra mim, eu acho que é como uma terapia, minha válvula de
escape, tipo assim, esquecer os meus problemas, que eu acho que é pra todo
mundo, né? (...) (entrevistado 05). Entretanto, é necessária uma
coleta em uma amostra representativa dessa população para que se possam
verificar tais afirmações.
As categorias seguintes dizem respeito aos aspectos
positivos e negativos do jogo de RPG apontados pelos entrevistados. A Tabela 2
traz alguns exemplos das evocações para a categoria aspectos positivos:
Em relação à categoria aspectos positivos, a
subcategoria com maior freqüência de respostas foi a de aumento de
raciocínio (sete dos nove entrevistados apontaram essa característica). Os
manuais dos jogos de RPG são repletos de tabelas e cálculos necessários para a
construção dos personagens, criação dos cenários, regras de combate,
movimentações nos mapas e para determinar a probabilidade de diversas ações do
jogo. Alguns jogadores acreditam que, por terem que assimilar tais regras e por
praticá-las nas sessões, acabariam por desenvolver sua capacidade de
raciocínio. Apontam também o fato de que as situações-problema propostas pelo
Mestre exigem soluções rápidas e criativas. É importante ressaltar que nem
todos os jogadores possuem o mesmo desempenho no ambiente de jogo, e é comum
encontrar pessoas que jogam há muito tempo, mas que não dominam as regras, que
acabam ficam a cargo dos colegas e do Mestre.
A segunda subcategoria com maior incidência de
relatos (seis dos nove entrevistados) foi a de que o RPG promove a interação
social, na qual os círculos de amizades adquiridos por meio do jogo são
indicados pelos entrevistados como sendo um dos seus benefícios. Como já
mencionado anteriormente, a temática da amizade é constante em toda a
entrevista, mas essa amizade parece ser trabalhada e cristalizada dentro do
próprio grupo onde o jogador se insere. O grupo se apresenta com forte coesão
interna, mas, quando comparado ao restante da sociedade, torna-se isolado, e o
que é apontado como benefício pode ser, na verdade, um agravante.
Outra sub-categoria apontada foi a diminuição da
timidez, na qual a prática do RPG levaria a um comportamento mais
desinibido por parte dos jogadores. Essa afirmação encontra o mesmo problema da
categoria anterior, pois a espontaneidade desenvolvida pelo jogador muitas
vezes se limita ao grupo de pertença, ou a outros grupos de RPG, sem se
expandir para o restante da sociedade. Em relação à função de catarse,
temos o RPG como forma de sair da realidade e de aliviar o stress do mundo real
ao pôr as emoções no jogo. No depoimento de uma das entrevistadas, as lutas
dentro do jogo do RPG permitiam aliviar a tensão que tinha em decorrência de
conflitos familiares. O restante das subcategorias são: prevenção contra
drogas, pois a maior parte dos jogadores de RPG não teria hábitos que
envolvessem bebida ou uso de outros tipos de drogas; incentivo à aquisição
de novas línguas, já que, por possuir muito material em outras línguas e
que não foram publicados no Brasil, os jogadores acabam por entrar em contato
com outros idiomas; vivenciar diferentes experiências, através da
possibilidade de simular diferentes situações e de aprender a se colocar no
lugar de outras pessoas; contato com outras formas de cultura, devido ao
fato de as temáticas propostas pelos jogos levarem os jogadores a buscar outras
fontes de informação: livros de história, geografia, revistas, desenhos
animados, etc; incentivo à leitura, porque alguns manuais de regras
possuem mais de trezentas páginas e propõem outras leituras complementares para
o jogo, o que incentivaria a prática da leitura entre os participantes; estimula
a imaginação e a criatividade, sendo estas duas últimas o resultado da
interpretação dinâmica no momento de jogo, quando é preciso imaginar os
cenários descritos pelo Mestre e resolver as situações-problema propostas por
ele.
Dentre as subcategorias citadas nos aspectos
positivos, aumento de raciocínio, incentivo à aquisição de novos idiomas,
vivenciar diferentes experiências, contato com outras formas de cultura,
incentivo a leitura e estímulo a imaginação e a criatividade vão encontrar
apoio no campo da pedagogia, no qual o RPG é usado na sala de aula (Klimick
& Bettocchi, 2003; Rodrigues, 2004; Silveira, n.d.). As subcategorias incentivo
à leitura, estímulo à imaginação e estímulo à criatividade encontram
respaldo na teoria de Rodriguez (2004) no uso do RPG para promover a pedagogia
da imaginação de Ítalo Calvino. Este último acreditava que, no mundo moderno em
que vivemos, somos bombardeados diariamente por imagens pré-fabricadas, por uma
massificação visual, que empobrece o nosso potencial imaginativo, ressaltando a
importância de se trabalhar com a pedagogia da imaginação, ou seja, com a
releitura e a reconstrução dessas imagens, tanto visuais como literárias,
dando-lhes uma nova forma. O RPG serviria como ferramenta para criar o espaço
necessário onde essa prática se desenvolveria.
A categoria aspectos negativos é composta por cinco
subcategorias: vício em RPG, sedentarismo, tolerância à agressividade,
incentivo à agressividade e restrição ao círculo de RPG. Exemplos das
evocações são apresentadas na Tabela 3:
A primeira delas, e a mais mencionada nas
entrevistas, fala sobre o vício no jogo de RPG, na dependência que pode vir a
surgir, segundo os entrevistados, da fuga em excesso da realidade, em que o
jogo proporcionaria uma estimulação semelhante à de outros entorpecentes e
faria esquecer os problemas cotidianos. O vício em jogos já foi constatado em
pesquisas estrangeiras, que afirmam que a dependência dos jogadores é
exatamente igual à provocada por outras drogas (Games, 2003), e, apesar de
esses estudos se referirem a jogos eletrônicos, não deve ser descartada a
possibilidade de que esses mesmos efeitos ocorram em jogos de tabuleiro.
Outro problema conseqüente do jogo foi indicado
como o sedentarismo causado por sua prática, uma vez que esses jogadores dedicariam
muito tempo ao RPG e acabariam por não se interessar por outros tipos de
atividade. Essa subcategoria está muito relacionada com a do vício, já que,
quanto maior for a dependência no jogo, provavelmente menor será o tempo
dedicado em outras atividades. As subcategorias tolerância à agressividade e
incentivo à agressividade chamam a atenção para a característica violenta
do jogo, que tem, em sua estrutura básica, regras de combate. Essas regras são
um grande atrativo no RPG, e as batalhas em jogo são freqüentes, o que, segundo
o entrevistado, acabaria por estimular esse tipo de conduta na vida dos
jogadores, além de aumentar a tolerância à agressividade dos mesmos. A última
das subcategorias dos aspectos negativos é a restrição ao círculo de RPG,
que chama a atenção para um problema já mencionado anteriormente, no qual os
jogadores ficam limitados aos laços estabelecidos dentro do grupo de RPG, o que
dificultaria o ingresso em outros grupos sociais que não estivessem envolvidos
com o jogo.
Há uma diferença considerável entre o número de
aspectos negativos e de positivos evocados pelos entrevistados. Alguns
participantes sequer apontaram tais aspectos, e nenhum deles conseguiu citar os
cinco pontos negativos propostos pela entrevista. Na verdade, três das cinco
categorias (tolerância à agressividade, incentivo à agressividade e
restrição ao círculo de RPG) foram postas por apenas um dos jogadores,
sendo que a última foi corroborada pelo relato de outros participantes no
decorrer da entrevista. Outro ponto interessante é que, quando solicitados a
falar sobre o que o RPG traz ou trouxe de ruim para a sua vida, as respostas
eram dadas em relação aos outros, e os participantes dificilmente mencionavam a
si próprios no depoimento, ao contrário do que acontecia quando os pontos eram
positivos.
Devido às notícias vinculadas pela mídia, de
assassinatos decorrentes da prática do jogo de RPG (Jogo Macrabo, 2005; Lopes,
2003), alguns participantes se posicionaram em uma postura defensiva ao jogo.
Essa postura manifestou-se de forma natural, não sendo nenhuma das perguntas da
entrevista dirigidas a essa temática, conforme descrito na Tabela 4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os jogos de RPG parecem ser compostos por elementos
que variam em diferentes níveis de funcionalidade. Ao que tudo indica, tais
níveis variam desde uma suposta melhora na aquisição de conhecimentos e
formação de grupos sociais, passando por meros comportamentos lúdicos e, em
alguns casos, assumindo a forma de viciação dos jogos de azar. Se for usado de
forma apropriada, pode se tornar uma ferramenta de auxílio ao ensino, área em
que já vem sendo aplicado por alguns educadores (Fortuna, 2001; Pavão, 1999;
Rodrigues, 2004; Silveira, n.d.). Mas se, ao contrário, for empregado de
maneira inadequada, pode resultar em problemas que vão desde o vício ao
confinamento em grupos específicos limitados a relacionamentos intragrupais.
A amizade foi tema central de quase todas as
entrevistas, sendo considerada desde o contato inicial com o jogo até a
motivação atual dos jogadores. Esse princípio unificante do grupo de jogadores
pode ser um caminho que leve a novas maneiras de se desenvolver interações em
grupos escolares e, quem sabe, possa até prover métodos alternativos de terapia
em grupo, complementando as técnicas já existentes de interpretação de papéis
na clínica.
Devido à natureza deste estudo, não nos foi
permitido, e nem era o objetivo desde trabalho, realizar uma análise
estatística mais aprofundada sobre os dados obtidos. As categorias que
emergiram durante a análise dos dados servem, além de descreverem as
características e crenças dos jogadores, para apontar as próximas metas que
certamente serão avaliados em pesquisas posteriores. Como exemplos de tais
metas, estão a verificação de correlações entre as crenças evocadas durante as
entrevistas e a conduta dos jogadores, bem como a aplicação de inventários que
permitam melhor descrição da sua personalidade.
O principal benefício trazido por esta pesquisa foi
justamente o de explorar e abrir as portas para outros estudos que poderão ser
realizados mediante as informações coletadas. Ao que tudo indica, ainda há
muito a se aprender sobre esse curioso jogo, que ganha cada vez mais espaço no
campo da pedagogia e na prática de tantos jovens que vivem imersos em uma era de
tecnologia que sufoca cada vez mais seu potencial criativo. É preciso se
apropriar da cultura em massa que emerge em nossa sociedade sem se deixar
intimidar pelo bombardeio de informações a que estamos submetidos atualmente, e
fazer uso de tais informações a favor da educação. A Psicologia pode ser um
meio essencial para se fazer uma leitura apropriada do RPG e para se explorar
suas propriedades, sejam elas de natureza prejudicial ou edificante para a
educação ou para o desenvolvimento do conhecimento.
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